O Condomínio de Lotes no ordenamento jurídico brasileiro: Análise Jurídica, Urbanística e Social.

O Condomínio de Lotes no ordenamento jurídico brasileiro: Análise Jurídica, Urbanística e Social.

1. Introdução

O fenômeno da urbanização brasileira tem reconfigurado a paisagem das cidades e, por consequência, o Direito Urbanístico. A crescente complexidade da urbanização brasileira impulsionou a necessidade de novos instrumentos jurídicos para o parcelamento do solo. Em resposta a essa demanda, a Lei nº 13.465/2017 conferiu legalidade e segurança jurídica ao condomínio de lotes, um modelo de empreendimento já popular no mercado imobiliário. A regulamentação do instituto, porém, acendeu um debate central: ele é uma solução inovadora para o desenvolvimento urbano ou um mecanismo que acentua a privatização do espaço público?

Este artigo analisa o condomínio de lotes para avaliar sua compatibilidade com a função social da propriedade, consagrada na Constituição Federal (art. 5º, XXIII). Para tal, examina suas implicações jurídicas, urbanísticas e sociais, buscando compreender se a nova legislação promove um desenvolvimento urbano mais justo e inclusivo ou se apenas formaliza a privatização de espaços que deveriam ser de uso coletivo.

2. Evolução Legislativa

A organização da propriedade imobiliária no Brasil tem sido objeto de contínua evolução legislativa, especialmente diante da crescente demanda por modelos urbanísticos mais flexíveis e adaptados à realidade contemporânea. Um dos avanços mais relevantes nas últimas décadas foi a introdução e regulamentação legal do condomínio de lotes, modalidade que antes existia de forma precária ou informal.

Até meados da década de 2010, os condomínios de lotes não possuíam previsão legal expressa. A legislação vigente, como a Lei nº 4.591/1964 e o Código Civil de 2002 (arts. 1.331 a 1.358), disciplinava apenas o condomínio edilício tradicional, caracterizado por unidades autônomas já construídas, sem contemplar a possibilidade de frações consistirem apenas em terrenos. Essa prática gerava insegurança jurídica para incorporadores, compradores e para os próprios municípios, que muitas vezes resistiam em aprovar tais projetos.

A Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017, supriu essa lacuna ao incluir o art. 1.358-A no Código Civil, definindo expressamente o condomínio de lotes como uma forma legítima de condomínio edilício:

“É admissível o condomínio edilício constituído por unidades autônomas sob a forma de terrenos, cujos proprietários poderão edificar segundo os parâmetros urbanísticos definidos no ato de instituição e no regulamento do condomínio”.

Da mesma forma, a Lei nº 4.591/1964, que antecede o Código Civil e trata da incorporação imobiliária e do condomínio em edificações, não previa a formação de condomínios compostos unicamente por terrenos destinados a construção futura por seus adquirentes.

Com a expansão urbana e a busca por formas de moradia mais adaptáveis, diversos empreendimentos passaram a ser implantados sob o modelo de condomínio de lotes, mesmo sem amparo legal expresso. Essa prática gerava insegurança jurídica, tanto para incorporadores quanto para compradores e para os próprios municípios, que muitas vezes resistiam em aprovar tais projetos.

Além de atender aos anseios do mercado imobiliário, a nova legislação permite uma ocupação urbana mais racional, desde que vinculada a parâmetros legais e urbanísticos claros.

3. Natureza Jurídica

A doutrina classifica o condomínio de lotes como um desdobramento do condomínio edilício, não uma simples variação do loteamento. Segundo Venosa, a peculiaridade desse instituto é permitir que a unidade autônoma seja um espaço de terreno, sem edificação, mas submetido ao regime condominial, o que garante disciplina interna e proteção jurídica.

O condomínio de lotes é uma modalidade de condomínio edilício em que as unidades autônomas não consistem em edificações prontas, mas sim em terrenos (lotes). Cada lote possui matrícula própria e pode ser edificado posteriormente, respeitados os parâmetros urbanísticos constantes da convenção condominial e do regulamento interno, devidamente aprovados pela autoridade municipal.

Sua natureza jurídica é de uma propriedade especial condominial, situada no âmbito do condomínio edilício, mas com autonomia técnica, administrativa e patrimonial, nos termos do art. 1.228§ 1º, do Código Civil, ou seja, trata-se de condomínio edilício atípico, caracterizado pela ausência de edificação obrigatória no momento da instituição, mas vinculado a diretrizes construtivas e urbanísticas futuras. Ele é juridicamente distinto do loteamento fechado, que permanece regido pela Lei nº 6.766/1979 e tem a natureza de parcelamento do solo urbano.

Apesar de sua forma peculiar, o condomínio de lotes submete-se às mesmas normas gerais do condomínio edilício tradicional, notadamente:

  • Regras de instituição e registro (art. 1.332 do CC);
  • Convenção e regulamento interno;
  • Assembleias, administração e contribuições (arts. 1.334 a 1.350 do CC);
  • Deveres e sanções aos condôminos (arts. 1.336 e 1.337 do CC).

E, ainda, sua instituição depende de aprovação urbanística específica, com projeto e memorial descritivo autorizados pelo município, o que demonstra a necessária interface entre direito civil e direito urbanístico.

4. Características Jurídicas e Urbanísticas

É fundamental distinguir o condomínio de lotes do loteamento comum com controle de acesso. Enquanto este se mantém sob a titularidade do poder público nas áreas comuns (ruas, praças), aquele transfere à coletividade condominial a responsabilidade integral sobre a infraestrutura, com regime de autogestão e financiamento interno.

As particularidades do condomínio de lotes, enquanto modalidade própria de organização do espaço urbano e do direito de propriedade, podem ser divididas em dois grandes eixos: jurídico e urbanístico.

4.1. Características Jurídicas

  • Propriedade Especial: Configura-se como forma de propriedade especial nos termos do art. 1.358-A do Código Civil, combinando frações ideais de propriedade comum com unidades autônomas sob a forma de terrenos.
  • Unidade Autônoma sob a forma de terreno: Cada lote é uma unidade independente, com matrícula individualizada no registro de imóveis, permitindo sua livre disposição, inclusive alienação e oneração.
  • Regime condominial aplicável: Submete-se às regras do condomínio edilício (arts. 1.331 a 1.358-A do Código Civil), inclusive quanto à convenção, administração, contribuições, assembleias e deveres dos condôminos.
  • Regulação complementar pela Lei nº 4.591/1964: Além do Código Civil, aplica-se a Lei de Condomínio e Incorporações, especialmente no que se refere à incorporação imobiliária e aos documentos de instituição e registro.
  • Obrigatoriedade de Convenção e Regulamento Interno: Define-se o uso permitido dos lotes, os parâmetros construtivos, o padrão arquitetônico, a responsabilidade pela manutenção das áreas comuns, entre outros aspectos.

4.2. Características Urbanísticas

  • Aprovação por autoridade urbanística municipal: A criação do condomínio de lotes exige projeto urbanístico aprovado pela prefeitura, conforme legislação local de parcelamento do solo e plano diretor.
  • Autogestão das áreas comuns: Diferentemente do loteamento comum, as vias internas, calçadas, áreas verdes e demais espaços de uso coletivo permanecem sob domínio dos condôminos e são mantidos às suas expensas.
  • Controle interno de padrão construtivo: O condomínio pode impor restrições arquitetônicas e urbanísticas mais rígidas do que aquelas previstas na legislação municipal, promovendo maior padronização e controle visual.
  • Ausência de entrega ao poder público: A infraestrutura interna do condomínio (ruas, iluminação, redes de água e esgoto, etc.) não é transferida ao Município, o que implica plena responsabilidade dos condôminos pela sua manutenção.
  • Integração com o zoneamento urbano: Deve respeitar as diretrizes do zoneamento, coeficientes de aproveitamento, recuos obrigatórios, permeabilidade e demais normas de uso e ocupação do solo vigentes no município.

5. Vantagens e Desafios Urbanísticos e Sociais

O condomínio de lotes surgiu como uma alternativa moderna e flexível às formas tradicionais de parcelamento do solo urbano, sendo finalmente reconhecido pelo ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei nº 13.465/2017. Essa modalidade permite que as unidades autônomas consistam em terrenos ainda não edificados, nos quais os próprios condôminos poderão construir futuramente, respeitadas as diretrizes urbanísticas e o regulamento interno.

Embora traga inegáveis vantagens, o modelo também apresenta desafios relevantes que devem ser enfrentados por gestores, incorporadores, advogados e o poder público.

5.1. Vantagens

  • Flexibilidade construtiva: Os condôminos têm liberdade para edificar conforme suas necessidades e possibilidades, desde que dentro dos padrões urbanísticos e arquitetônicos previamente aprovados. Isso proporciona diversidade no uso e planejamento da ocupação do solo.
  • Segurança jurídica: A Lei nº 13.465/2017 inseriu o artigo 1.358-A no Código Civil, dando amparo legal ao condomínio de lotes. Isso eliminou a insegurança que antes existia quanto à validade dessa forma de organização fundiária.
  • Valorização imobiliária: Por oferecer infraestrutura completa, segurança privada, áreas de lazer e conveniência, os condomínios de lotes geram valorização dos imóveis e atraem maior interesse do mercado.
  • Autonomia administrativa: A gestão e a manutenção das áreas comuns são responsabilidade dos próprios condôminos, o que permite maior controle sobre a qualidade dos serviços e conservação do patrimônio coletivo.
  • Padronização e ordenamento urbano: O regulamento interno pode impor normas estéticas, limites de gabarito e recuos, promovendo maior harmonia arquitetônica e disciplinamento do uso dos lotes.

5.2. Desafios

  • Complexidade na aprovação urbanística: A implantação depende de projeto urbanístico aprovado pelas autoridades municipais, o que pode gerar morosidade e exigências técnicas complexas, principalmente em municípios com legislação desatualizada.
  • Responsabilidade integral pela infraestrutura: Diferente do loteamento convencional, o condomínio de lotes não transfere a infraestrutura ao poder público. Isso exige organização e capacidade financeira contínua dos condôminos para manutenção de vias, redes de esgoto, iluminação, áreas verdes, entre outros.
  • Conflitos entre vizinhos: A liberdade para construir pode gerar conflitos entre condôminos quanto a ruídos, estilos arquitetônicos, muros e horários de obra, sendo essencial a existência de um regulamento detalhado e eficiente.
  • Custos de manutenção: A autogestão implica em custos permanentes com segurança, limpeza, jardinagem e conservação, os quais devem ser rateados entre os condôminos, podendo gerar inadimplência e disputas.
  • Fiscalização e conformidade: A ausência de fiscalização pública direta exige uma administração condominial bem estruturada para garantir o cumprimento das normas internas e urbanísticas.

O condomínio de lotes representa um avanço importante na política de uso e ocupação do solo urbano, unindo liberdade construtiva com planejamento coletivo. Seus benefícios são expressivos, mas exigem organização, conhecimento jurídico e compromisso coletivo para superar os desafios decorrentes da autogestão. Com o adequado equilíbrio entre autonomia e responsabilidade, esse modelo tende a consolidar-se como uma alternativa viável e segura no mercado imobiliário brasileiro.

6. A Função Social da Propriedade

A função social da propriedade, consagrada na Constituição Federal (art. 5º, XXIII e art. 170, III) e no Código Civil (art. 1.228, § 1º), impõe ao proprietário a obrigação de utilizar o bem de forma compatível com os interesses coletivos e o bem-estar da sociedade.

No campo urbano, a Lei nº 10.257/2001 ( Estatuto da Cidade) detalha os instrumentos para garantir essa função, como o plano diretor, o parcelamento, edificação e utilização compulsórios, o IPTU progressivo no tempo e a desapropriação com títulos da dívida pública.

Para Edésio Fernandes, o direito urbanístico deve ser compreendido como um meio de democratizar o acesso ao espaço urbano, o que impõe a inserção dos condomínios de lotes em políticas de desenvolvimento urbano.

No entanto, o condomínio de lotes levanta importantes questões urbanísticas:

  • Pode levar à descentralização da gestão, exigindo maturidade institucional da administração condominial;
  • Pode reduzir a sobrecarga de manutenção para o poder público;
  • Gerar o risco de segregação urbana, criando bolsões de exclusão socioespacial;
  • Promove paisagens urbanas mais homogêneas, o que contribui para a valorização imobiliária, mas pode afetar a diversidade.

A função social da propriedade se realiza, nesse modelo, por meio de planejamento urbano prévio aprovado pelas autoridades municipais, efetivação de infraestrutura e serviços, controle sobre o uso e a edificação e a preservação ambiental com a existência de permeabilidade do solo, controle de drenagem e sustentabilidade, contribuindo para a função ecológica da propriedade.

A adoção do condomínio de lotes traz impactos importantes para a estrutura e dinâmica urbanas: a descentralização da gestão urbanística, o que exige maturidade institucional e capacidade de autogestão; a redução da sobrecarga do poder público; o risco de segregação urbana; e o controle sobre o uso e construção tende a promover paisagens urbanas mais homogêneas e planejadas, contribuindo para a harmonia e valorização imobiliária.

A compatibilidade com os princípios do Estatuto da Cidade, desde que observados os critérios de interesse coletivo, mobilidade, acessibilidade e sustentabilidade, os condomínios de lotes podem ser compatíveis com o planejamento urbano e a função social da cidade.

7. Conclusão

O condomínio de lotes representa uma manifestação do direito de propriedade urbana, compatível com os princípios constitucionais da função social. Contudo, seu sucesso depende da observância de critérios urbanísticos, da atuação efetiva dos municípios e da capacidade de autogestão dos condôminos. Somente com a articulação entre o interesse individual e o coletivo é possível assegurar que essa modalidade contribua positivamente para o desenvolvimento urbano sustentável e justo.

A chave é reconhecer a importância econômica e jurídica do instituto, mas condicioná-lo às diretrizes de um planejamento urbano democrático e inclusivo. Caso contrário, corre-se o risco de transformá-lo em um instrumento de elitização e exclusão, em afronta aos princípios constitucionais. Somente com o adequado equilíbrio entre autonomia privada e responsabilidade coletiva é possível assegurar que essa modalidade contribua positivamente para o desenvolvimento urbano sustentável e justo.

A solução está em um equilíbrio regulatório: reconhecer a importância econômica e jurídica desse instituto, mas condicioná-lo às diretrizes do planejamento urbano democrático e inclusivo.

Referências

  • BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
  • BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jul. 2001.
  • BRASIL. Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017. Dispõe sobre a regularização fundiária urbana e rural e altera dispositivos legais referentes ao condomínio de lotes. Diário Oficial da União, Brasília, 12 jul. 2017.
  • FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Direitos Reais. 14. ed. Salvador: Juspodivm, 2022.
  • VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2020.
  • SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
  • FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico: fundamentos de política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
Compartilhe esse artigo